Sua sabedoria não está apenas no seu uso utilitário, mas também em sua confecção. Nas mãos que o moldaram, na argila que o constitiu, sua própria mudança de estado, de barro bruto à cerâmica resistente.
Na história da arte, muitos registros foram deixados em sua superfície. Memórias perpetuadas por séculos, resistêntes ao tempo, desenterradas pela arqueologia, reinterpretadas pela modernidade.
Eram as mulheres as grandes fazedoras desta arte, passada entre gerações. Mulheres sentadas entre outras, contando histórias do cotidiano, pintando a história do seu povo e de sua cultura.
Constantemente usado em cerimônias, seu conteúdo representava a oferênda sagrada, muitas vezes recebendo misturas pelo processo alquímico da transformação, contavam com o tempo de maturação, fermentação, tal como um útero que gesta.
No livro "A grande Mãe", o psicólogo junguiano Erich Neumann, resgata alguns destes simbolismos conectivos entre os vasos e a energia feminina.
"O vaso de argila, e mais tarde o vaso em geral, é um atributo característico e muito antigo da mulher, o qual, neste caso, a substitui e, além disso, a complementa."
"Confeccionar vasilhas é tanto uma parte da atividade criativa do feminino, quanto fazer uma criança, isto é, o ser humano que - assim como o vaso - tantas vezes foi moldado a partir da terra."
“O vaso da transformação só pode ser efetuado pela mulher, porque ela própria, em seu corpo que
Corresponde ao da Grande Deusa, é o caldeirão da encarnação, nascimento e renascimento.
E é por isso que o caldeirão mágico está sempre nas mãos de uma figura humana feminina, a sacerdotisa e a Bruxa.”
Dentre as muitas histórias e lendas a ele relacionado, gosto muito de uma em especial, contada entre alguns povos indígenas brasileiros, relatado pela antropóloga brasileira Betty Mindlin, no livro "Moqueca de Maridos". A história revela um interessante ensinamento, sobre o papel do vaso/vasilhame na perpetuação dos saberes entre as gerações de mulheres:
“O vaso da transformação só pode ser efetuado pela mulher, porque ela própria, em seu corpo que
Corresponde ao da Grande Deusa, é o caldeirão da encarnação, nascimento e renascimento.
E é por isso que o caldeirão mágico está sempre nas mãos de uma figura humana feminina, a sacerdotisa e a Bruxa.”
Dentre as muitas histórias e lendas a ele relacionado, gosto muito de uma em especial, contada entre alguns povos indígenas brasileiros, relatado pela antropóloga brasileira Betty Mindlin, no livro "Moqueca de Maridos". A história revela um interessante ensinamento, sobre o papel do vaso/vasilhame na perpetuação dos saberes entre as gerações de mulheres:
"Nesse Tempo, as mulheres ainda não tinham potes para cozinhar. Uma
moça casada lamentava-se por não ter onde cozinhar a chicha. A mãe ficou com pena dela, prometeu dar um jeito: - Minha filha, não quero ver você triste por faltarem potes. Vou virar barro para você poder fazer um pote.
Você me emborca de cabeça para baixo. Minha xoxota vai ser o gargalo do pote. Você me lava bem por dentro e depois me põe no fogo para cozinhar a chicha. Quando a água secar, filhinha, eu aviso e você põe mais, para meu coração não queimar.
A moça obedeceu direitinho a mãe. Pôs a mãe de cabeça para baixo, e
esta ficou sendo uma panela de barro. A moça lavou-a bem pelo gargalo,
sabendo que era a xoxota da mãe. Buscou lenha, acendeu o fogo e pôs a
mãe-pote para cozinhar com chicha. Cada vez que a sopa fervia, punha
mais água, tinha medo de esquentar demais o corpo da mãe, de queimar
seu coração. E aí foi sendoY toda vez que a chicha estava bem cozidinha,
já no ponto tirava do fogo e botava no jirau para esfriar.
Esvaziava a panela, aguava bem aguada e a mãe virava gente de novo,
igualzinha a quem fora.
-Ai, filhinha, sou uma mulher cansada de tanto ferver água no fogo!
Sentava e coava a chicha para a filha.
O marido da moça, genro da mãe-barro, adorava a nova chicha, achava
gostosa demais. Pedia sempre, e, quando saía para a roça, mãe e filha
repetiam a receita de virar barro e cozinhar.
- Você quer fazer chicha outra vez, minha filha? Oferecia a mãe.- Vire-me
de cabeça para baixo para eu ser de barro, lave para eu ser o pote de sua
comida, cozinhe com bastante água!
Acontece que o marido da moça tinha um xodó, uma namorada. Espiou
escondida, mãe e filha e ficou sabendo como as duas faziam a chicha mais
gostosa da aldeia. Despeitada, foi fazer intriga. Correu para roça atrás do
namorado, o genro da mãe-de-barro:
- Você gosta mais da chicha da tua mulher que da minha, mas ela cozinha a
sua comida dentro da periquita da tua sogra!
O moço ficou em dúvida: como podia ser?
- Você não acredita, vá ver! Não tem nojo de comer o que sai da xoxota, da
periquita de sua sogra?
O rapaz ficou desconfiado, matutando. Acabou por acreditar na versão da
namorada, ficou furioso. Correu para maloca e esbravejou com a mulher,
acusando-a de lhe dar uma comida vergonhosa:
- Eu pensando que sua chicha era gostosa, feita num pote limpinho, bem
lavado, e você cozinhando dentro da periquita da tua própria mãe! Como
pude comer uma sujeira dessas!
Deu um chute na panela-sogra, posta a cozinhar no fogo, com chicha até a
borda. O pote quebrou-se em uma porção de pedacinhos, pobre da sogra.
A moça juntava os cacos, aos prantos. Tentava colar, refazer a mãe. Esta
gemia de dor:
- Minha filha, não posso mais morar aqui. Teu marido me esmigalhou
lembrar a ofensa dói tanto quanto o meu corpo machucado. Quero ir
embora, morar onde há barro, para continuar a fazer potes para você.
A mãe-de-barro, dizem, foi morar no igarapé. Virara barro mesmo, e do
barro fazia bacias, potes, panelas, todos os utensílios para comida.
A mulherada da aldeia descobriu e foi tirar o barro mais bonito para fazerem
elas próprias a sua cerâmica. Tiraram, tiraram barro, mas esqueceram da
moça, da filha da mãe-de-barro.
A moça estava grávida, bem barriguda. Vivia chorando, com saudade e com
pena da mãe.
- Vocês estão sovinando barro, não me dão nem um pouquinho - queixou-se
a filha- mas o barro é minha mãe. Vou ter panelas bem mais bonitas que a de
vocês.
As outras foram-se, a moça ficou chorando solitária, horas a fio. A mãe veio,
apareceu em forma de gente. Consolou-a, dizendo que o barro que as
outras tinham era a cinza do seu fogão, que para filha daria a mais linda
louça do mundo. E que as outras iam ver, pedir, com inveja, mas que ela
não devia dar a ninguém.
A mãe voltou à forma do barro, a moça entrou no lamaçal, tirando panelas
belíssimas já prontinhas, de todas as formas e tamanhos. Pôs todas no
marico, despediu-se da mãe, que novamente lhe recomendou que não
desse a ninguém, e tomou o caminho de volta a maloca. Antes da aldeia,
escondeu os presentes de barro no mato.
Na maloca, as mulheres lhe perguntavam onde fora, mas ela chorava.
Sabia que depois de lhe dar tanta cerâmica, a mãe iria para bem longe, não
se veriam mais. Como barro, só restava a cinza do fogão, era essa que as
mulheres iriam usar para fabricar as próprias panelas. Quanto a ela, aos
poucos vinha trazendo do mato os potes magníficos, verdadeiras obras de
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